Suprema corte admite violações persistentes de direitos da população negra e obriga Executivo a reformular plano nacional de igualdade racial
O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, nesta quinta-feira (18), a existência de racismo estrutural no Brasil e determinou que o poder público adote medidas concretas para enfrentar violações históricas de direitos da população negra, informa a Folha de São Paulo. A decisão foi tomada no julgamento de uma ação que discute a omissão do Estado diante da desigualdade racial, tema que vinha sendo analisado pela Corte desde o fim de novembro.
O caso foi analisado no âmbito da ADPF 973, ação apresentada por um grupo de partidos políticos que aponta violações sistemáticas aos direitos fundamentais da população negra, como o direito à vida, à saúde, à segurança e à alimentação adequada, além do aumento da letalidade de pessoas negras em decorrência da violência policial e institucional. A ação foi incluída na pauta do plenário pelo presidente da Corte, Edson Fachin, como parte da programação da Semana da Consciência Negra.
O julgamento teve início com o voto do relator, ministro Luiz Fux, que inicialmente defendeu o reconhecimento do chamado “estado de coisas inconstitucional”, caracterizado pela violação generalizada e persistente de direitos fundamentais. Esse entendimento, no entanto, não prevaleceu integralmente. Na sessão desta quinta-feira, Fux ajustou sua posição, passando a reconhecer a gravidade das violações, mas entendendo que medidas já adotadas ou em curso pelo Estado afastariam, neste momento, a configuração formal do estado de coisas inconstitucional.
Essa corrente foi acompanhada pelos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Para esse grupo, embora haja falhas graves, existe um conjunto de políticas públicas em andamento que demonstra esforço estatal para enfrentar o problema, ainda que de forma insuficiente.
Em sentido diverso, os ministros Flávio Dino, Edson Fachin e Cármen Lúcia defenderam que o STF reconhecesse explicitamente a omissão sistêmica do Estado no combate ao racismo estrutural e institucional. No voto proferido nesta quinta-feira, Fachin detalhou os critérios necessários para a caracterização do estado de coisas inconstitucional: violação massiva e generalizada de direitos fundamentais, persistência da situação ao longo do tempo, inadequação de soluções isoladas e necessidade de atuação coordenada de múltiplos órgãos estatais.
Segundo o presidente do STF, esses quatro elementos estão presentes no caso brasileiro. Ele afirmou que o país sustenta um mito de democracia racial que, na prática, dificulta o enfrentamento do racismo e impede o pleno exercício da cidadania pela população negra. “Tais violações não são episódicas ou circunstanciais, mas contínuas e resultam de um processo histórico de longa duração, que remonta ao regime escravocrata e à consolidação de um imaginário de ‘democracia racial’ que, na prática, serviu para invisibilizar o racismo, dificultar sua adequada identificação e enfrentamento e silenciar a discussão sobre qualquer política reparatória”, declarou Fachin.
O ministro acrescentou que esse modelo foi decisivo para a construção de uma sociedade hierarquizada. “Este mito foi determinante para o modelo de sociedade hierarquizada que, intencionalmente, se construiu, uma vez que visava a evitar a discussão da temática e inibir a organização da população negra para reivindicações. Esta escolha estatal se reflete na atual realidade socioeconômica de estratificação social”, afirmou.
Apesar das divergências sobre a classificação jurídica do problema, o STF definiu medidas obrigatórias. O Executivo deverá revisar o Planapir (Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial) ou elaborar um novo plano de combate ao racismo institucional, com metas claras e prazos definidos. O trabalho deverá ser concluído no prazo de 12 meses e terá acompanhamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No voto que prevaleceu, Luiz Fux destacou que as políticas públicas voltadas à igualdade racial ainda são insuficientes para enfrentar a complexidade do problema. Ele citou como exemplo as cotas raciais, afirmando que, embora relevantes, elas não atacam as raízes históricas e estruturais da desigualdade. Para o ministro, é necessário ampliar as ações estatais para áreas como saúde, segurança alimentar, segurança pública e proteção da vida, além da adoção de políticas reparatórias e de preservação da memória da população negra.
Na área da educação, a decisão prevê a capacitação de professores para o ensino da história e da cultura afro-brasileira, inclusive com cooperação de universidades do continente africano. Para o sistema de Justiça, Fux sugeriu a criação de protocolos específicos de atendimento a pessoas negras em tribunais, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e forças policiais.
Ao contextualizar o tema, o relator fez um resgate histórico desde a abolição da escravidão até os impactos atuais da ausência de políticas reparatórias. “As gerações pós-abolição ficaram presas em um ciclo de pobreza derivado da persistente incapacidade estatal de promover condições propícias de ascensão social dos menos favorecidos”, afirmou Fux.
A decisão do STF consolida, no plano institucional, o reconhecimento de que o racismo estrutural continua a produzir efeitos profundos na sociedade brasileira e impõe ao Estado a obrigação de enfrentar essas desigualdades de forma coordenada e contínua.
Fonte: Brasil 247 com informações da Folha de S. Paulo
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