Miguel Uribe e o padrinho, o ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe
Nos últimos cem anos, os atentados políticos demonstraram ter uma pontaria desconcertantemente seletiva. Tiros e bombas, essas ferramentas brutas de interrupção da história, raramente erram o alvo quando miram aqueles que ousam sonhar. Pacifistas, reformistas, radicais do bem, todos tombam.
Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr., Malcolm X, os irmãos Kennedy, o arcebispo Óscar Romero: homens que acreditaram ser possível curvar o mundo em direção à justiça foram eles próprios dobrados, com muita violência e muito sangue.
Os fascistas, por sua vez, parecem habitados por uma obstinação biológica. Sobrevivem a tudo. Passam incólumes por atentados, envenenamentos, tiros à queima-roupa e ameaças mirabolantes. Hitler sobreviveu a uma explosão. Mussolini desviou-se de projéteis com a desenvoltura de um acrobata.
Pinochet, Fujimori, Netanyahu, Trump, Bolsonaro. Nenhum deles saiu de cena pela violência. Ao contrário, retornaram das tentativas de eliminação com mais capital simbólico, como se a proximidade com a morte os tivesse ungido com uma espécie de autoridade transcendental. O que não os mata, os elege.
O que isso nos revela?
Talvez que a História tenha um gosto peculiar por ironias cruéis. Ou, mais cinicamente, que o fascismo, ao contrário da esperança, é protegido por forças que preferem fabricar heróis a enterrar cadáveres. Cada bala que erra um fascista não interrompe uma trajetória: inaugura uma campanha. O erro de mira transforma-se em milagre. E o milagre, por sua vez, em narrativa eleitoral. Nasce ali o messias da vez, o santo padroeiro da desinformação.
O caso mais recente ocorreu ontem à noite, em Bogotá. Miguel Uribe, pré-candidato à presidência da Colômbia, foi alvejado a tiros. Sobreviveu. Claro.
Passemos ao seu prontuário político, à capivara do elemento.
Miguel Uribe é neto de Julio César Turbay, ex-presidente da Colômbia (1978–1982), e filho de Diana Turbay, jornalista sequestrada e assassinada por Pablo Escobar durante a crise dos extraditáveis. Naquele período, narcotraficantes colombianos desencadearam uma campanha violenta contra o Estado para impedir a extradição de criminosos para os Estados Unidos.
Está no partido de oposição Centro Democrático, fundado pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, seu chefe político. Não são parentes, apesar do sobrenome. Álvaro é narcofascista em tempo integral, profeta do autoritarismo tropical, padrinho e referência confessa para fascistas como Nayib Bukele. Não apenas governou com punho de ferro e unhas sujas de sangue, como também orquestrou, num lavajatismo avant la lettre, uma engenharia de lawfare sofisticada.
Instrumentalizou o sistema judicial, alimentado por delações fraudulentas de milicianos das Autodefesas Unidas da Colômbia, para dizimar adversários políticos. Era um projeto de poder com duas pernas: uma legalidade armada de mentiras fabricadas e cuidadosamente plantadas na imprensa amiga, e uma ilegalidade institucionalizada, personificada por milícias que atuavam como extensão informal do Estado. Isso é o uribismo.
Miguel é um fascista de boutique, embalado na estética neoliberal do século XXI, com verniz de meritocracia e alma de algoritmo. Não se contenta em repetir ad nauseam as mentiras de Álvaro. Ele as amplifica, as estiliza com filtros e as promove via hashtags patrocinadas. Nas redes sociais, é uma usina de desinformação, um influenciador do ódio, envolto em gravata e crucifixo. Agora, contudo, é também “vítima”. Também foi baleado.
Segundo o Globo, “o hospital disse que o estado de Uribe, senador de oposição ao atual governo e um dos favoritos na corrida eleitoral colombiana, é de máxima gravidade. O prognóstico é reservado.” Eis aí, em uma frase, toda a poesia trágica dos boletins médicos de ocasião, esse dialeto sagrado da imprensa que transforma “gravidade” em sinônimo de ressurreição política. É o gênero literário dos que nunca morrem. Pois o fascismo, ao contrário do amor e da democracia, tem sete vidas. E todas são bem alimentadas.
O momento exige extrema cautela, não com a saúde de Miguel Uribe, que vai muito bem, obrigado, mas com o uso político que se fará disso. Nós, brasileiros, conhecemos o roteiro. Ele ressurgirá em pé, brandindo a dor como bandeira, dizendo-se perseguido, injustiçado, tocado por Deus e abençoado pelas balas que não o matam. E, sim, muitos acreditarão.
O fascismo contemporâneo compreendeu o jogo. Precisa da violência, não para morrer, mas para renascer. E assim se reinventa, atentado após atentado. Quem morre são sempre os que ousam amar a humanidade, os que desejam repartir o pão e a terra, os que defendem a paz, mas não têm aparato de segurança.
A esquerda morre porque acredita. A direita sobrevive, ou ressuscita, porque calcula.
Diante do que leio nos jornalões, só tenho uma certeza: o candidato oficial do fascismo colombiano passa bem, e sairá ainda melhor deste atentado. No teatro do horror político latino-americano, a bala é apenas o ensaio. O espetáculo verdadeiro é a eleição.
Fonte: DCM