"Pesidente, ativista, líder", definiu o presidente uruguaio, Yamandu Orsi, ao lamentar a morte de Pepe Mujica
José "Pepe" Mujica (Foto: José Cruz/Agência Brasil)
Faleceu aos 89 anos o ex-presidente do Uruguai José "Pepe" Mujica, informou nesta terça-feira (13) o presidente do país, Yamandu Orsi, nas redes sociais.
"É com profundo pesar que anunciamos o falecimento do nosso colega Pepe Mujica. Presidente, ativista, líder. Sentiremos muita falta de você, querido velho. Obrigado por tudo o que você nos deu e pelo seu profundo amor pelo seu povo", escreveu Orsi em seu X.
Mujica enfrentava um câncer de esôfago e recebia cuidados paliativos para amenizar as dores causadas pela doença.
Em janeiro deste ano, Mujica revelou que o câncer, que enfrentava desde abril de 2024, havia se espalhado e que ele não faria novos tratamentos. Além do tumor, ele enfrentava uma doença imunológica há mais de duas décadas, que afetava seus rins e dificultava o tratamento médico.
Mujica liderou o Uruguai entre 2010 e 2015. Após finalizar o mandato presidencial, chegou a ser eleito duas vezes senador e atuou na Casa até 2020, quando deixou o cargo devido à pandemia do coronavírus.
Antes de entrar na política institucional, Mujica integrou o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, grupo de resistência à ditadura militar uruguaia.
⊛ A trajetória de Pepe Mujica, por RT - Nascido em Montevidéu em 1935, 'El Pepe' Mujica, como era popularmente conhecido, representou uma faceta incomum da política, tendo trilhado um longo caminho desde sua participação na guerrilha nos anos 1970 — o que lhe custou 12 anos de prisão — até conquistar a presidência por meio de eleições democráticas. Assim, consolidou-se como um presidente sem diploma universitário, que jamais se enriqueceu ou quis fazer uso dos privilégios do poder.
Em 2010, após assumir o cargo, ele sequer quis se mudar para a elegante residência oficial. Alheio aos protocolos, escolheu viver em sua casa simples de sempre, ao lado da esposa, Lucía Topolanski — outra figura histórica, fundamental e amplamente reconhecida na política regional. Nunca possuíram propriedades, bens, carros de luxo ou contas bancárias volumosas. Nem uma única suspeita de corrupção.
"Não sou pobre, sou sóbrio, leve de bagagem. Gosto de viver com o essencial para que as coisas não me roubem a liberdade", costumava dizer para rebater os elogios à humildade com que vivia — traço que lhe rendeu o apelido de "o presidente mais pobre do mundo".
Mujica também se destacou por sempre ter se declarado ateu, identidade que o diferenciava da maioria dos mandatários latino-americanos, habituados a jurar sobre bíblias, frequentar missas, rezar e pedir a ajuda de Deus para governar.
Em parte graças a essas convicções afastadas de qualquer pressão religiosa, ele impulsionou a legalização do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Mas se houve algo que realmente surpreendeu nesse ex-guerrilheiro, foi a ousadia inédita ao confrontar as tradicionais políticas globais sobre drogas, transformando o Uruguai no primeiro país a legalizar a produção, a venda e o consumo de maconha.
Com isso, fez o mundo voltar os olhos — seja com espanto, ceticismo ou admiração — para um “paisito”, como o definia com carinho o escritor Eduardo Galeano, com pouco mais de três milhões de habitantes, fincado ao sul do Oceano Atlântico.
O impacto foi tanto que o cineasta sérvio Emir Kusturica decidiu contar sua trajetória em um documentário intitulado El Pepe: uma vida suprema, lançado em 2018 no Festival de Veneza.
A expectativa gerada pelo filme demonstrou o interesse em conhecer um presidente que, três anos antes, havia deixado o cargo com uma aprovação recorde de 65%.
⊛ Uma vida de militância na esquerda - A militância política capturou Mujica desde a adolescência. Por isso, aos 21 anos, ele decidiu abandonar completamente os estudos para ingressar no Partido Nacional, uma força que surgia como contraponto ao Partido Colorado, que governava o Uruguai havia quase um século.
No entanto, o Partido Nacional — também conhecido como Partido Blanco — possuía um viés mais à direita, o que destoava das convicções ideológicas de Mujica. Assim, no início da década de 1960, ele passou a integrar a construção da nova União Popular, voltada à esquerda.
Essa participação, contudo, durou pouco. Em 1964, Mujica aderiu ao Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, grupo guerrilheiro de extrema esquerda que se inspirava na Revolução Cubana e defendia a tomada do poder pelas armas. Naquele período, o Uruguai enfrentava forte instabilidade institucional, com sucessivos governos colegiados, uma grave crise econômica, protestos sociais crescentes e dura repressão.
Os Tupamaros ganharam repercussão internacional por meio de sequestros, execuções, atentados com explosivos e assaltos a bancos — ações que serviam para financiar o movimento e das quais Mujica participou ativamente, ao lado de outros guerrilheiros.
Nas eleições presidenciais de 1971, forças de esquerda se uniram para criar a coalizão Frente Ampla. O candidato, Líber Seregni, conquistou 18% dos votos — um resultado que ameaçava romper o tradicional bipartidarismo entre os Blancos e os Colorados.
Entretanto, o resultado eleitoral foi manchado por fraudes que só seriam confirmadas três décadas depois: os Estados Unidos, segundo comprovações posteriores, teriam articulado o esquema que garantiu a vitória de Juan María Bordaberry, do Partido Colorado — o mesmo presidente que, em 1973, lideraria um autogolpe e inauguraria uma sucessão de regimes militares que governariam o Uruguai até 1985.
Foi justamente durante o governo de Juan María Bordaberry (1972–1976) que Mujica foi preso pela quarta vez, junto com os demais integrantes da cúpula dos Tupamaros. Dessa vez, seria definitivo. Ao contrário das ocasiões anteriores, ele não conseguiu mais escapar da prisão.
⊛ Cativeiro e retorno - Durante 12 anos, Mujica tornou-se refém da ditadura. Sua detenção foi extrajudicial — nunca chegou a ser julgado ou formalmente acusado — e, por isso, pode-se dizer que foi vítima de um sequestro.
Com a guerrilha derrotada, os tupamaros passaram a ser alvo constante de torturas e todo tipo de maus-tratos, até que, nos primeiros momentos da redemocratização em 1985, beneficiaram-se de uma lei de anistia que permitiu sua libertação.
Mujica abandonou definitivamente as armas e retornou à política. Filiou-se ao Frente Ampla — a coalizão de forças progressistas surgida no início da década de 1970 — e, em 1995, conquistou seu primeiro cargo eletivo ao ser eleito deputado da Câmara de Representantes.
Já como parlamentar, passou a ganhar destaque na vida pública uruguaia. Seu passado como guerrilheiro não impediu que se tornasse uma das figuras mais influentes e populares do país, à medida que o Frente Ampla crescia e enfraquecia de forma irreversível o bipartidarismo tradicional entre o Partido Nacional e o Partido Colorado.
Em 1999, Mujica foi eleito senador. Naquele ano, o candidato da Frente Ampla, Tabaré Vázquez, chegou ao segundo turno contra Jorge Batlle, do Partido Colorado. Embora não tenha vencido, parecia claro que era apenas uma questão de tempo e organização para que a esquerda alcançasse a presidência. E assim aconteceu: em 2004, Vázquez venceu de forma contundente no primeiro turno, com 51,6% dos votos.
Foi o período de esplendor dos governos progressistas na América Latina, quando coexistiram lideranças como Néstor Kirchner e Cristina Fernández (Argentina); Evo Morales (Bolívia); Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil); Rafael Correa (Equador); Fernando Lugo (Paraguai) e Hugo Chávez (Venezuela).
Em 2010, Mujica passaria a integrar esse seleto grupo.
⊛ Governo e legado - Mujica venceu as eleições presidenciais de 2009, no segundo turno, com 54,6% dos votos.
Aos 74 anos, consolidou-se como um líder despojado, avesso a protocolos e à correção política, mas também pragmático, distante dos extremismos ideológicos que marcaram seus primeiros passos na política.
Mais de quatro décadas depois, sua trajetória — de guerrilheiro e prisioneiro político durante a ditadura a governante eleito democraticamente — se completava.
Mas ele ainda reservava surpresas. Em 2012, sem que ninguém previsse, Mujica decidiu enfrentar tabus e propôs a legalização da produção, comercialização e consumo da maconha para fins medicinais e recreativos. Em outras palavras, regulamentou toda a cadeia produtiva de uma planta que ainda é alvo de estigmas em boa parte do mundo. Nenhum outro país havia ousado tanto.
A iniciativa foi arriscada, pois rompia com o paradigma da guerra às drogas imposto pelos Estados Unidos, além de não contar com o apoio da maioria da população uruguaia. O intenso debate social que se instaurou no país atraiu a atenção da comunidade internacional.
"Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é entregar pessoas ao narcotráfico. Nenhuma dependência é boa, salvo a do amor", afirmou Mujica em uma de suas muitas frases célebres com as quais defendeu a iniciativa que acabou sendo aprovada no fim de 2013, alterando os paradigmas da guerra contra o tráfico de drogas em escala global.
Essa não foi a única medida polêmica. Em 2011, Mujica reabriu o debate sobre a legalização do aborto — tema que seu antecessor, Tabaré Vázquez, havia vetado, mesmo com o apoio de 60% da população à proposta.
No ano seguinte, o Uruguai tornou-se o segundo país da América Latina e do Caribe, depois de Cuba, a legalizar a interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação — ou em casos posteriores, quando a gestação fosse resultante de estupro.
O caráter progressista e inovador do governo de Mujica em relação aos direitos civis se consolidou em 2013, quando entrou em vigor a lei do casamento igualitário, permitindo que pessoas do mesmo sexo se casassem. Naquele momento, apenas a Argentina havia aprovado legislação semelhante na região.
⊛ Despedida - Em 2014, a esquerda uruguaia venceu sua terceira eleição geral consecutiva, o que permitiu a Mujica devolver a faixa presidencial a Tabaré Vázquez, líder da Frente Ampla que voltou a se candidatar naquele ano.
Mujica então retornou ao Senado, onde permaneceu até 2020, quando renunciou ao cargo e encerrou sua trajetória política, motivado pela pandemia da Covid-19.
Na época, aos 85 anos, decidiu se dedicar ao cultivo do campo e à manutenção dos jardins de sua chácara, ao lado da esposa, Lucía Topolansky — ex-guerrilheira tupamara e presa política que, assim como Mujica, transformou-se em uma das maiores lideranças do país. Além de ter sido senadora, Lucía tornou-se, em 2017, a primeira mulher a ocupar a vice-presidência do Uruguai.
Apesar do afastamento dos cargos públicos, Mujica nunca se retirou completamente da vida política. Por meio de entrevistas e viagens internacionais — especialmente na América Latina —, continuou sendo uma das figuras mais admiradas e respeitadas da cena política regional.
Fonte: Brasil 247